quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

FRUTO PODRE

Ontem  alguém me perguntou qual motivo para não comer mais manga, uma vez que quando eu cheguei na cidade eu amava, não respondi, pois pareceria loucura essa história que vou lhes contar. É uma história que acontece com frequência por aqui.

Era um pé de manga alto e muito frutífero, suas mangas rosadas e grandes, bem saborosas. O desejo de toda manga por ali era ser comida e saboreada por um humano, pois em sua visão era a finalidade única de sua existência, então toda vez que alguém passava por ali elas ficavam "hei, psiu, oooi" na tentativa de chamar a atenção, e a manga escolhida sempre era invejada. Mas naquele pé tão robusto e formoso, havia uma manga diferente, que gostava de ficar acordada as noites e dormir durante os dias, não queria ser comida de ninguém, ela queria descobrir o mundo lá fora, e de noite ela se sentia mais viva, ela gostava de saborear a luz do luar o brilho das estrelas, e o sol pela manhã lhe incomodava. Suas companheiras, pela manhã começavam tagarelar, "manguinha preguiçosa hein, acorda tarde, não faz menor esforço pra ser saboreada", e riam "vai apodrecer aí hein, hahaha". E ela costumava pensar no que acontecia depois que um fruto apodrecia, no que acontecia depois que eram comidas, era só isso mesmo que o destino lhe reservou? Ser comida ou apodrecida?

E uma noite de verão, em que o céu estava muito bonito e todas as suas companheiras dormiam, cansada da solidão de ser diferente, pensou, "vou me atirar no chão, vou conhecer o mundo, é hoje", mas a boba, decidiu conversar com uma manga mais velha que estava no mesmo pé, e a resposta foi: "você esta ficando maluca, preste atenção você é bonita, vistosa, suas chances de se dar bem nessa vida são muito maiores que as minhas que sou pequena e estou ficando velha, acalma menina jovem".
Mas era uma manga voluntariosa, e ela sabia que não podia continuar com suas duvidas queria arriscar, virou-se para um lado, depois para o outro e ficou retorcendo o ramo verde que a prendia, "hmmm, vamos solte", e os ventos do destino pareciam ajudar, soprando com força sobre ela, caiu estabacada, "ploc" fez o barulho de suas novas rachaduras, já era de manhã.

E ela tentava se arrastar para ver o que tinha lá fora, e escutava de vez em quando alguém dizendo, "coitada, fruto podre né, cai do pé sozinha", e lá vinha um humano passando, "não me coma, não me coma, por favor", era uma criança, e disse "olha uma manga, vou chupar"; e a humana maior disse "nãão, Joazinho, essa manga esta podre não vê, olha só pra ela, não serve de nada", então o garoto saiu chutando a pobre manga, "e lá vai ele, oooou, corre pra lá chuta pra cá, é gol, é gol, goooool ééé´do Brasiiiil" arremessando a pobre manga contra parede em um só golpe. "Aiaiai, isso dói", então ela se viu sem casca toda melequenta, e disse "acho que estou sangrando, será que estou apodrecendo"?, e lá ficou pensando em como faria para ir a outros lugares, mas não estava sendo fácil para ela, de repente um exército de formigas se aproximava, e ela assustada gritava "hei, hei onde vocês vão? o que estão fazendo?" a formiga maior disse, acalme-se estamos cortando seus cabelos, e vamos levar para casa, é nosso trabalho", ela pensou consigo mesmo, "nem sabia que eu tinha cabelos, não hão de me fazer falta", ficou quietinha, deixando as trabalhadoras fazerem o serviço sem muito questionar, ela começava a se sentir aliviada depois de um longo dia.

Agora era uma manga seminua, alias ela nem parecia mais com uma manga, era um caroço apenas, ela pensava "qual será meu fim não tenho mais força para rolar, será que vou ficar aqui para sempre, não seria melhor ter sido comida?" ela estava se sentindo arrependida. E na fria noite veio sobre ela águas torrecenciais e ela ria com cada pingo que lhe fazia cocegas "hahaha, vá de vagar, estou peladinha, hahahaha"; e sossegou em plena luz do dia pode dormir pela primeira vez em sua curta vida, sem que ninguém tirasse sarro, sem ninguém para satisfazer, não se importou com a solidão. Quando acordou percebeu que havia um manto de terra sobre ela, ela estava quase totalmente encoberta, fez força para sair, mas foi inútil e chorou, tanto que novamente adormeceu.

Alguns dias de agonia se passaram, tenatando sair debaixo da terra, e quando ela acordou respirou um ar diferente, virou para um lado depois para o outro e notou como qualquer vento a movimentava "Que estranha estou", "Meu Deus, estou magra e comprida, esticada, pareço uma...não, não é possível, estou virando um galho de árvore?". E sim era possível, ela estava virando uma bela árvore, que devido aos tempos chuvosos crescia rapidamente, fazendo-a sentir se forte e bela todos os dias, e contente com cada centímetro que crescia, pois a cada conquista via o mundo de uma nova perspectiva e novas coisas descobria. Até que chegado o dia, começou a florescer, eram muitos elogios que lhe faziam, "que pé bonito, vai dar boas mangas", alguns casais que passeavam no parque se beijavam encostado em seu tronco, outros deixavam sua marca nela, e ainda havia gente que voluntariamente lhe abraçava, fazendo a se sentir importante e parte de tudo aquilo, outros diziam "ah eu amo essa mangueira, sombrinha boa, com rede presa em seus galhos". Satisfeita respirava contente, e mandava um ar puro de alegria sem saber exato o bem que estava fazendo, e foi então que um dia percebeu que seu primeiro fruto estava crescendo, ainda era uma manga jovem como ela foi um dia, verde e sem boa aparência, mas ela sabia que não demoraria muito pra que ela pudesse crescer.

Era uma mangueira agora, robusta, formosa e podia dormir e acordar quando quisesse para sempre, e pensava: "não meus frutos não vão ser comidos", balançando-se com fortemente, para ver se os derrubava, para lhes dar a chance do mesmo destino, mas conforme o tempo foi passando ela ouvia o mesmo diálogo do seu pé original, qualquer humano que passasse: "oiii, olha eu aqui", e nenhuma só manga desejava se desprender, ninguém que pudesse pensar diferente, ninguém que almejasse outro sonho, ou questionasse o acaso e o destino, morriam de medo de ficar podre e cair no chão, a mercê de qualquer rejeição. Foi quando por um momento lembrou-se do passado, e pensou ter feito errado, deve ser melhor ser comida, vez em quando ouvia algumas mangas contando sua história "era uma manga preguiçosa, ela vivia querendo dormir pelas manhãs, a vida né, a vida se encarrega de tirar os frutos podres do pé, nunca precisamos fazer esforço nenhum, fruto podre cai sozinho", despertando a ira daquela mangueira e fazendo pensar sobre o destino. Ela ficava pensando, o que eu teria sido dela se seguisse o destino original foi quando um dia a confirmação chegou. Então um dia viu um mocinho, o mesmo rapaz que um dia brincava com ela de jogar futebol, era um menino levado, e estava um pouco mais crescido, mas ainda era pequeno, ele estava arriando suas calças, com cara não muito boa, e logo o odor fétido subiu as suas narinas, "humm que coisa podre o que será que está fazendo, pensou, coisa boa que não é"; e la vinha a mãe do moleque, "Joazinho, aí não é lugar menino, que horror", ele com cara de choro disse "mãe não consegui segurar, doía minha barriga" e então veio a resposta de todas as suas perguntas "Também, você fica ai o dia inteiro comendo mangas, ta aí o resultado, deve ser que alguma lhe fez mal e seu corpo tratou de expulsar".

Como se alguém lhe balançasse ela pensou "Oh, que nojo, eu iria virar isso?", sorriu de suas amigas que tanto lhe criticavam como se a natureza tratasse de vingá-la, olhou por cima de sua copa e avistou tanta coisa bela, tantas paisagens, o céu bonito, os elogios que recebia, e orgulhou-se de sua coragem, lembrando dos momentos mais difíceis de sua longa jornada, estava feliz, ela queria frutificar por centenas de anos, o mito sobre as frutas podres era bem maior do que sua reputação, mas era com alegria que ela alertava, "vire árvore é melhor que virar uma cagada". A boa mangueira era uma planta bem sucedida, e feliz só por ser aquilo que era, aquilo que um dia bem quis.

E quando eu vejo manga meus caros, me lembro que ela pode desejar ser algo mais, e é por piedade que as deixo em paz.

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